Boa leitura!

Abra-se, sinta o cheirinho penetrar nas suas narinas e o abraço envolver o seu corpo. Respire fundo, não tenha medo!
Entre neste mundo que não é só meu, viaje comigo e deixe-se levar.

2 de junho de 2014

Sentimentos misturados

Assim que acordei e me levantei da cama, deparei-me com os olhos vidrados no espelho que cobre a parede deste quarto. Aqui, meu pensamento foge de mim mesma e recordações tomam conta do meu íntimo. Talvez, isso se deve às rugas que enfeitam a minha face, talvez à pele manchada pelo sol, ou ainda ao olhar que transborda experiências de épocas ora felizes e ora ainda mais felizes.
Assim, atenta ao espelho, permaneci e permaneço por longas e longas horas. Como em um passe de mágica, minha aparência de 80 anos dá vez ao corpo de uma garotinha saltitante, que corre com os cabelos loiros e encaracolados ao vento pelo gramado do sítio da família. Em Santa Felicidade, realmente eu fui feliz; aqui eu sou feliz.
Quando criança, mamãe vestia-me com coloridos vestidos de chitas, repletos de babados, laços e fitas, dentro dos quais eu me sentia uma boneca de pano. Sempre com meias brancas em detalhes em passa-fitas, acrescentava-se aos pés os típicos sapatos de bonecas, sempre coloridos. Como, em um mundo encantado, vivia assim: correndo pelos cantos, recolhendo ovos, brincando com os porquinhos, incomodando os bichos dali.
Na escola, também era tudo muito divertido. A alguns quilômetros da casa principal, ficava nossa sala de estudo: um pequeno quadrado, um quadro negro, carteiras enfileiradas, colegas especiais e a dona Maricota. Que saudades que tenho dela! Foi dona Cotinha quem me despertou ao que fui, ao que sou: professora...
Em meio àquele mundo, fui crescendo, do sítio à escola, da fantasia à imaginação... mas, infelizmente, fui ficando grandinha. Digo infelizmente porque quando se é criança o mundo é um repleto arco-íris, as brincadeiras são incontáveis, os problemas não existem e as preocupações são com o fantasiar e com o que criar para brincar.
Pouco a pouco, fui recebendo responsabilidades de meus pais. A menina dos laços e fitas e roupas de chita foi aprendendo a usar calças e botas de borracha, a dar milho às galinhas e lavagem aos porcos.
Confesso que aquela alegria de meninice foi dando espaço a tarefas que pouco me agradavam. A vida no sítio passou a ser rotineira e a perder o brilho, meus cabelos sempre soltos ao vento, agora estavam sempre em forma de coque; de Alice no País das Maravilhas, passei a me sentir a Cinderela sem seu sapatinho, mas sonhando pela chegada do príncipe encantado.
Por bons anos fiquei assim, ajudando meus pais e estudando, sempre buscando ficar o mais próximo possível da professora Maricota. Ela, percebendo todo meu interesse e dedicação, um dia me fez uma proposta: tornar-me sua ajudante.
Aquela oportunidade foi para mim tomada como a chave que abriria espaço para uma nova vida, a minha nova vida. Claro que aceitei e, com ela, aprendi todos os segredos do fazer professora. Aprendi a gostar ainda mais da escola, dos alunos, dos livros... E mais: aprendi a me perder nos livros e assim conheci muitas pessoas, muitos lugares e, inclusive, descobri como me tornar professora de fato.
Após anos ao lado de Cotinha, e mesmo contra a vontade de meus pais, saí do sítio e fui construir a minha história. Com o auxílio da minha mestra, segui para uma cidade vizinha onde havia uma escola de ensino superior, pequena, porém suficiente para as minha pretensões...
Tempos ali, instalada e quase ao final do curso, o sapatinho de cristal que – quem sabe eu havia perdido lá no sítio – foi encontrado por Marco. Amor eterno! Era um homem que chamava a atenção de qualquer rapariga: elegante, vestia-se em boas fazendas, usava sapatos engraxados e possuía lindos olhos azuis que brilhavam com a luz do sol. Além disso, tinha um sorriso de menino, mas o jeito de uma pessoa madura que seria capaz de me proteger de qualquer perigo.
Apaixonei-me, ele também... Meses depois, no sítio dos meus pais, e logo após o término da faculdade, casamo-nos e voltei a morar ali, nas terras da família. Naquele local, junto a Marco – que era um grande administrador e visionário – construímos uma pequena escola que pouco a pouco foi crescendo. Nela trabalhei até me aposentar e é onde hoje meus filhos mantêm a tradição da família e os negócios do pai que há 10 anos faleceu. Foi levado por uma doença da qual não quero falar, da qual me faz mal falar.
Meus pais ficaram conosco bons anos, participaram no nosso casamento, da nossa felicidade, do nascimento das nossas crianças e até do nosso primeiro netinho. Viveram bastante, eram pessoas felizes que souberam aproveitar a vida no campo, a se alimentar bem e a velhice os levou para um lugar bem especial.
Não nos desfizemos de nada do que deixaram e também - eu e Marco - não cogitamos em sair daqui. Aquele meu pensamento de adolescente foi embora na época da faculdade, quando – longe de papai e mamãe – conheci o sentimento da saudade.
Agora estou aqui, sigo diante deste espelho, nostálgica com o meu passado e, ao mesmo tempo, com medo do que virá. Sinto que as minhas pernas não são mais tão fortes como antes, vejo que meus cabelos loiros agora são tão brancos que chegam a ser azulados, que meu corpo está encurvadinho.
Tenho medo de não ver meu netinho crescer, tenho medo de deixar meus filhos. Sei que já cresceram, que estão grandinhos, mas - para mim - eles são apenas crianças que precisam da minha proteção. Na verdade, tenho medo é da morte.
Esta noite, sonhei com Marco, ele estava bem, em um belo traje. Bailávamos – só nós dois – ao centro de um grande salão, dizia-me que me amaria para sempre e que estava à minha espera para juntos rodearmos o salão como fazíamos quando casados em vida. Dizia-me que queria me sentir, poder tocar em minhas mãos e ficar assim, horas e horas olhando o horizonte, perdendo-se em pensamentos.
Acordei num susto e, ao sair da cama, senti meus pés e pernas cansados como se tivesse dançado a noite toda, como se o sonho tivesse sido real. Por isso, aqui estou, diante do espelho, mexida, com medo e, ao mesmo tempo emocionada, lembrando-me do meu velho, lembrando-me do meu grande amor. Recordo nossa história, com medo, mas ao mesmo tempo com o desejo de poder transformar-me em um cisne e flutuar pelo salão com a pessoa que sempre amei e que espera por mim.