Sentimentos misturados
Assim que
acordei e me levantei da cama, deparei-me com os olhos vidrados no espelho que cobre
a parede deste quarto. Aqui, meu pensamento foge de mim mesma e recordações tomam
conta do meu íntimo. Talvez, isso se deve às rugas que enfeitam a minha face,
talvez à pele manchada pelo sol, ou ainda ao olhar que transborda experiências
de épocas ora felizes e ora ainda mais felizes.
Assim, atenta
ao espelho, permaneci e permaneço por longas e longas horas. Como em um passe
de mágica, minha aparência de 80 anos dá vez ao corpo de uma garotinha
saltitante, que corre com os cabelos loiros e encaracolados ao vento pelo
gramado do sítio da família. Em Santa Felicidade, realmente eu fui feliz; aqui
eu sou feliz.
Quando criança,
mamãe vestia-me com coloridos vestidos de chitas, repletos de babados, laços e
fitas, dentro dos quais eu me sentia uma boneca de pano. Sempre com meias
brancas em detalhes em passa-fitas, acrescentava-se aos pés os típicos sapatos
de bonecas, sempre coloridos. Como, em um mundo encantado, vivia assim:
correndo pelos cantos, recolhendo ovos, brincando com os porquinhos, incomodando
os bichos dali.
Na escola,
também era tudo muito divertido. A alguns quilômetros da casa principal, ficava
nossa sala de estudo: um pequeno quadrado, um quadro negro, carteiras
enfileiradas, colegas especiais e a dona Maricota. Que saudades que tenho dela!
Foi dona Cotinha quem me despertou ao que fui, ao que sou: professora...
Em meio àquele
mundo, fui crescendo, do sítio à escola, da fantasia à imaginação... mas, infelizmente,
fui ficando grandinha. Digo infelizmente porque quando se é criança o mundo é
um repleto arco-íris, as brincadeiras são incontáveis, os problemas não existem
e as preocupações são com o fantasiar e com o que criar para brincar.
Pouco a pouco,
fui recebendo responsabilidades de meus pais. A menina dos laços e fitas e
roupas de chita foi aprendendo a usar calças e botas de borracha, a dar milho
às galinhas e lavagem aos porcos.
Confesso que
aquela alegria de meninice foi dando espaço a tarefas que pouco me agradavam. A
vida no sítio passou a ser rotineira e a perder o brilho, meus cabelos sempre
soltos ao vento, agora estavam sempre em forma de coque; de Alice no País das Maravilhas,
passei a me sentir a Cinderela sem seu sapatinho, mas sonhando pela chegada do
príncipe encantado.
Por bons anos
fiquei assim, ajudando meus pais e estudando, sempre buscando ficar o mais próximo
possível da professora Maricota. Ela, percebendo todo meu interesse e dedicação,
um dia me fez uma proposta: tornar-me sua ajudante.
Aquela
oportunidade foi para mim tomada como a chave que abriria espaço para uma nova
vida, a minha nova vida. Claro que aceitei e, com ela, aprendi todos os
segredos do fazer professora. Aprendi a gostar ainda mais da escola, dos
alunos, dos livros... E mais: aprendi a me perder nos livros e assim conheci
muitas pessoas, muitos lugares e, inclusive, descobri como me tornar professora
de fato.
Após anos ao
lado de Cotinha, e mesmo contra a vontade de meus pais, saí do sítio e fui construir
a minha história. Com o auxílio da minha mestra, segui para uma cidade vizinha
onde havia uma escola de ensino superior, pequena, porém suficiente para as minha
pretensões...
Tempos ali,
instalada e quase ao final do curso, o sapatinho de cristal que – quem sabe eu
havia perdido lá no sítio – foi encontrado por Marco. Amor eterno! Era um homem
que chamava a atenção de qualquer rapariga: elegante, vestia-se em boas
fazendas, usava sapatos engraxados e possuía lindos olhos azuis que brilhavam
com a luz do sol. Além disso, tinha um sorriso de menino, mas o jeito de uma
pessoa madura que seria capaz de me proteger de qualquer perigo.
Apaixonei-me,
ele também... Meses depois, no sítio dos meus pais, e logo após o término da
faculdade, casamo-nos e voltei a morar ali, nas terras da família. Naquele local,
junto a Marco – que era um grande administrador e visionário – construímos uma
pequena escola que pouco a pouco foi crescendo. Nela trabalhei até me aposentar
e é onde hoje meus filhos mantêm a tradição da família e os negócios do pai que
há 10 anos faleceu. Foi levado por uma doença da qual não quero falar, da qual
me faz mal falar.
Meus pais
ficaram conosco bons anos, participaram no nosso casamento, da nossa
felicidade, do nascimento das nossas crianças e até do nosso primeiro netinho.
Viveram bastante, eram pessoas felizes que souberam aproveitar a vida no campo,
a se alimentar bem e a velhice os levou para um lugar bem especial.
Não nos
desfizemos de nada do que deixaram e também - eu e Marco - não cogitamos em
sair daqui. Aquele meu pensamento de adolescente foi embora na época da
faculdade, quando – longe de papai e mamãe – conheci o sentimento da saudade.
Agora estou
aqui, sigo diante deste espelho, nostálgica com o meu passado e, ao mesmo
tempo, com medo do que virá. Sinto que as minhas pernas não são mais tão fortes
como antes, vejo que meus cabelos loiros agora são tão brancos que chegam a ser
azulados, que meu corpo está encurvadinho.
Tenho medo de
não ver meu netinho crescer, tenho medo de deixar meus filhos. Sei que já
cresceram, que estão grandinhos, mas - para mim - eles são apenas crianças que
precisam da minha proteção. Na verdade, tenho medo é da morte.
Esta noite,
sonhei com Marco, ele estava bem, em um belo traje. Bailávamos – só nós dois –
ao centro de um grande salão, dizia-me que me amaria para sempre e que estava à
minha espera para juntos rodearmos o salão como fazíamos quando casados em
vida. Dizia-me que queria me sentir, poder tocar em minhas mãos e ficar assim,
horas e horas olhando o horizonte, perdendo-se em pensamentos.
Acordei num
susto e, ao sair da cama, senti meus pés e pernas cansados como se tivesse
dançado a noite toda, como se o sonho tivesse sido real. Por isso, aqui estou,
diante do espelho, mexida, com medo e, ao mesmo tempo emocionada, lembrando-me
do meu velho, lembrando-me do meu grande amor. Recordo nossa história, com medo,
mas ao mesmo tempo com o desejo de poder transformar-me em um cisne e flutuar
pelo salão com a pessoa que sempre amei e que espera por mim.
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